Quando somos confrontados com a infinidade da biblioteca descrita por Jorge Luís Borges, gradualmente revelada como um arquivo de todos os livros em matéria e em potência, não podemos deixar de procurar traçar paralelos com a realidade. Teremos nós uma biblioteca infinita, grande demais para sequer a entendermos como tal? Onde está essa biblioteca, o que é e como se nos apresenta? O livro em si, objecto milenar que tão pouco mudou desde que Gutenberg consolidou as práticas de impressão desenvolvidas inicialmente na Ásia e posteriormente na Europa, pode ser um invólucro de infinitas formas de ler um texto e assim reescrevê-lo.
De facto, a leitura pode ser também uma escrita, não apenas no acto da criação de significados sobre o que foi escrito e impresso, mas também na fisicalidade inerente à utilização do livro. O livro é, no limite, o sujeito final da escrita — o prazer do texto, como Barthes sugeriu, elevado a uma meta-escrita inevitável. Fala-se de actos conscientes como os apontamentos à margem (e que belo exemplo são os apontamentos de David Foster Wallace, uma proto-escrita da sua própria obra) ou as dobras no canto da página, que nos situam no texto e permitem pausas. Mas fala-se também do uso, do acidente: o rasgão, a sujidade, o pó e a humidade e tanto mais, acabando na perda ou destruição. E queimar um livro, como sabemos, é também escrever nas páginas da História.
A Actual Crise, nome da instalação e da peça que a alimenta, apresenta duas propostas de leitura sobre o mesmo texto. Além dessa dualidade, remete ainda para um tempo histórico, no qual imaginamos o leitor e dono do livro, e na sua pessoa nos projectamos. Estas leituras são uma nova escrita que enuncia a existência de uma narrativa, mas que a dispensa em prol de uma história física e material — o fantasma de um livro que existe dentro de si mesmo.